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Fetiche

Deixei que o relógio terminasse de dar onze batidas no outro cômodo para enfim me levantar. Minha última aventura tinha me enfraquecido tanto que agora já tinha se passado uma semana que eu dormia, e não me sentia na melhor das disposições ainda. Mas a fome falava mais alto que a indisposição e meu interior parecia uma folha seca no fogo, cujos lados se curvam para dentro enquanto ela morre.
Penteei os cabelos e me vesti de forma simples, não esperava nada dessa noite além de uma refeição quente. Saí, não andei nem duas quadras e já avistei meu tipo favorito: nas mãos uma garrafa meio vazia de aguardente, um cigarro pendendo dos lábios, roupas surradas e aquele ar de miséria. Podia reconhecer um escritor há milhas de distância.
Não demorou para que me convidasse para seu apartamento, e quase estraguei a diversão quando minha boca tocou seu ombro. Ele cheirava a cigarro e perfume, o que era ao mesmo tempo desagradável e irresistível. O prédio onde ele vivia parecia ser habitado por outros tipos como ele e seus móveis desgastados denunciavam ser de segunda mão.
Depois de mais umas duas goladas de sua garrafa à mão ele despencou em uma poltrona, profundamente adormecido. Seu semblante ingênuo quase me fez vacilar, mas sentei sobre seus joelhos e segurei sua cabeça ternamente, expondo seu pescoço branco-pérola. Pousei meus lábios sobre a pele e bem no exato momento que ela se rompia, ele abriu os grandes olhos castanhos e os fixou em mim.
Como se dissesse: "eu sei o que você está fazendo".

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