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Cetim

O parque de diversões abria pela primeira vez em muitos anos. Os brinquedos tinham ganhado uma nova demão de tinta, o cheiro de pipoca enchia o ar no fim da tarde e como já anoitecia, crianças mais novas já tinham ido embora. De tarde havia chovido e logo na entrada uma árvore tinha gotículas de chuva nas folhas. Quando Vicente passou por ela, alguém esbarrou no tronco e o cabelo preto dele se cobriu de minúsculas estrelas, que refletiam as luzes coloridas da roda gigante.
Ricardo esperava junto ao carrossel comendo um algodão doce nervosamente, mas o mundo parou quando viu o outro vindo em sua direção. Ricardo tinha esperando mais de um ano para convidar Vicente pra sair e o nervosismo o consumia. Quando Vicente chegou perto o suficiente, sorriu para ele e o apertou contra si em um abraço afetuoso.
Ricardo demorou um pouco a se soltar no fim do abraço, corando visivelmente. Apontando a roda gigante, disse em voz alta:
- Você não queria ir na roda gigante?
Vicente virou sua atenção para o brinquedo, os olhos brilhando de contentamento.
- Não acredito! Você se lembra do meu sonho antigo com a roda gigante. Obrigado por me trazer aqui.
O outro deu ombros, como a dizer que não era nada, mas um sorriso pequenino escapou de seus lábios. Vicente agarrou sua mão e o arrastou rapidamente para a fila, mas continuou segurando mesmo quando estacou atrás das outras pessoas. Ricardo parecia embaraçado demais até mesmo para respirar, seu rosto intensamente sardento enrubesceu e até suas orelhas ficaram vermelhas. Vicente, na tentativa de acalmá-lo, abraçou-o novamente, encostando seu rosto contra o peito.
- Sempre gostei de quando você fica corado. Estou muito feliz de estar aqui com você.
Ricardo deixou escapar um suspiro de alívio e o abraçou de volta, colocando os braços envolta de sua cintura e segurando o algodão doce esquecido nas costas dele. Queria que o tempo parasse naquele instante e pudesse sentir aquele perfume fresco para sempre. O tempo realmente pareceu se alterar, pois a fila rapidamente diminuiu e em um instante eles subiam para uma das cabines.
Os assentos eram forrados de tecido vermelho barato, já muito manchado, e o vidro em volta da cabine estava um pouco embaçado. Mas Vicente não parecia ver essas coisas: seus olhos maravilhados estavam voltados para o céu noturno como se estivesse tentando absorver o momento. Ricardo segurou a mão do outro com um pouco mais de força e pigarreou de leve para chamar sua atenção.
- O seu sonho... Não era dar um beijo na roda gigante?
Vicente foi pego totalmente de surpresa, mas antes que respondesse os lábios de Ricardo encontravam os seus timidamente.

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