Pular para o conteúdo principal

O Palhacinho

Volta e meia me pego olhando para aquela vitrine da antiga loja de brinquedos, que há muito foi fechada mas até hoje ninguém ousou arrombar e roubar. Os vidros já estão amarelados e tudo lá dentro está coberto de poeira, claro, mas os brinquedos parecem conter espíritos vivos dentro de si. De cada prateleira, seus olhos chamejam em nossa direção.
De novo olhei para a estante de madeira escura e observei aqueles que sempre vinha ver, e podia jurar que mudavam de direção. Uma boneca, com ar sapeca e maravilhosos cabelos cor de rosa; um marionete de madeira, cujo títere sempre estava seguro em sua mão; e um palhacinho um tanto quanto macabro.
Era um daqueles brinquedos educativos... Um poste coberto por aros coloridos de borracha, e na ponta, para segurar os aros, uma cabecinha sorridente de palhaço. Sempre me intrigava aquele brinquedo. Era o que mais parecia se mexer de propósito quando eu não estava olhando, e sorria de modo angelical lá da estante. Durante os últimos dias, tive até pesadelos com aqueles olhos pintados à mão.
Certo dia, para a minha surpresa, dei com a loja aberta. Tudo havia sido cuidadosamente espanado, mas ainda conservava aquele ar de velhice. Não tive outro pensamento - entrei a passos largos, paguei em dinheiro e recebi um pacote embrulhado em papel manteiga. Em casa, afoita e ansiosa, rasguei o papel e ousei encarar pela primeira vez frente a frente aquele sorriso que tanto me atormentava.
Demoníaco. Era a única palavra que eu achava para descrevê-lo. Seu sorriso feliz, sua tez colorida e seus olhos de anjo me passavam, absorvidos todos de uma vez, uma fortíssima impressão. Não sabia se o amava, ou se o odiava. Num ápice de emoção, atirei-o a um canto e saí do quarto trêmula, pensando em como poderia haver um artesão de brinquedos onisciente do poder que tinha.
Dias depois, voltei ao quarto, sentindo crescer dentro de mim um ódio descomunal. Tomei o palhacinho nas mãos, ajeitei-lhe os cabelos e o chapéuzinho e o levei para o jardim dos fundos. Era um lugar um tanto quanto escuro, por causa do grande carvalho, e cheio de ervas daninhas. Coloquei o palhacinho em cima da mesa de ferro onde eu costumava deixar o regador e, sem pensar duas vezes, ateei-lhe fogo.
Como é bom ver o passado morrer.

Comentários

"Volta e meia me pego olhando para aquela vitrine da antiga loja de brinquedos, que há muito foi fechada mas até hoje ninguém ousou arrombar e roubar."

TRUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUCO!!!!
HAHAHAHAHAHAHA

queria um dia poder escrever tão bem quanto vc, gatinha ;)
Juliana disse…
saudade de você, diabo <3

Postagens mais visitadas deste blog

Encomenda

Metódico, cirurgicamente limpo, preciso. O sobretudo preto e a cartola de cetim da mesma cor; as delicadas luvas de pelica branca, tudo denotava sua classe. Era um assassino. E não era unicamente um assassino... era um gênio. O melhor e mais conhecido de todos os tempos, e além de tudo, o mais rico. Engraçado como essa noite não carregava sua maleta com seus preciosos instrumentos. Levava em uma das mãos sua bengala, engastada com pérolas negras; e na outra, um estranho embrulho branco. Era grande o suficiente para parecer um presente, mas a cobertura era uma tira de pano branco e simples. Não podia pertencer à nenhuma de suas amantes. Cuidadoso também nesse sentido, nunca deixara com que nenhuma delas sobrevivesse mais do que algumas noites de satisfação. Presenteava-as, claro, mas logo recuperava o lucro perdido. Até a noite em que a conhecera. Helena era uma figura mítica. Muito mais bela que Helena de Tróia, muito mais poderosa que qualquer rainha amazona. Seus cabelos de um ruivo ...

Terra Fértil

Assim vou correndo, pra longe daqui, sorrindo, sozinha, morrendo de rir; Já desperdicei meu veneno, quem merece, tanto faz ; não há mais alvo seguro pra se correr atrás. Talvez muito longe, talvez muito perto, o que procuro, não sei ao certo; já é tarde demais pra poder discutir, sorrindo, sozinha, morrendo de rir. Não mais lágrimas, nem mais esperança; vou rindo sozinha, como uma criança. Meus passos seguros, sozinhos, certeiros, perseguidos por sombras infinitas, não importa quantas vezes forem ditas, meus pés se movem lépidos, rasteiros. Assim vou correndo, pra longe daqui, sorrindo, sozinha, morrendo de rir. Meu sorriso conformado, em sua dor ele florece; minha lágrima fútil, em teu sangue se aquece. Acordei um tanto quanto sádica, imperativa em meu modo de amar; essas lacerações na tua carne, mais me fazem te admirar. Cortes profundos, sangrentos, tão belos quanto pinturas. Teus ossos e pele magra, as mais perfeitas molduras. Seu desespero estampado, doentio, em teus olhos sedento...