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Solitude

Muito poucos já experimentaram o verdadeiro valor da solidão. Não é algo passageiro, nem fácil de reconhecer. Essas minhas mãos velhas e calejadas bem o sabem, a solidão é silenciosa, escura e irreversível. Só um acontecimento muito grande nos tira ou nos põe nela... E quando meu Wilbert partiu no último inverno, tossindo sangue, já há muito sendo acariciado pela tuberculose, eu soube que ela viria.
Não se sabe quando ela começa ou termina. Não há limiar desse sentimento, como há no dia e na noite. Só sei que, de repente, me descobri na escuridão sem me lembrar sequer de como era a luz. Meus cabelos, já brancos pela idade, foram caindo, e minha pele já velha, enrugou-se ainda mais, sulcos fundos marcados no meu rosto, trilha das lágrimas.
A vida toda vivi nesse vilarejo, criando ovelhas. Estação vem, estação vai. Ordenhar. Tosar. Medicar... E tudo de novo, num ciclo sem fim. As pessoas vêm à minha fazendinha e nem vejo seus rostos, a solidão me tirou isso também. Não são minhas vistas de velha, não senhor.
Olho no espelho e o que vejo são sombras. Sombras nos meus olhos que, de tanto chorar, ficaram aquosos... Olhos de velha sempre são chorosos, onde já se viu? Olhos de velha que se fecham ao escurecer mas jamais veem o amanhecer.
Bem, já está ficando tarde, já fechei o celeiro e as janelas. Hora de mais uma noite insone...

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