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Brisa Marítima

Ele subiu as escadas de madeira pé ante pé para não acordá-la, e abriu a porta com a certeza de que encontraria aquelas pálpebras rosadas ainda trêmulas, envolvidas num sonho. Entretando, os lençóis estavam arrumados e ela, sentada na janela, vestindo sua camisola branca de cetim.
O cabelo preto caía-lhe pelos ombros, e seus olhos muito azuis estavam voltados para fora.
- A dor é uma coisa muito difícil de se encarar, concorda? Todos nós, ao sentir dor, nos escondemos...
- Que coisa para se pensar logo agora, Giulia. Desça daí, eu trouxe seu café.
Ela o olhou com desprezo.
- Você é muito mesquinho, Pierre.
Jogou suas pernas magras pra fora da janela e pulou, deixando-o boquiaberto segurando uma bandeja cuidadosamente arrumada. Correu até a janela aberta e viu-a no jardim, espanando a grama de seus shortinhos que sempre vestia por baixo da camisola.
- Giulia, onde você está indo? - gritei da janela, mais desesperado do que com raiva.
- Não é óbvio? Estou fugindo! - ela gritou em resposta.
O vento que vinha do mar passou por ela, fazendo seus cabelos chicotearem o ar, e entrou por sua boca aberta, amargando-lhe a língua.

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