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Almas

Madrugada alta e o vento da noite me abraçava como a uma filha. O silêncio, meu companheiro das ruas desertas, já vinha me acompanhando há dias. A luz macia dos postes fazia meu rosto parecer ainda mais terrível do que já fora - aprofundava minhas marcas, sombreava meus ossos e tornava, senão cruéis, muito melancólicos aqueles meus olhos.
E aquele silêncio... Aquele silêncio me incomodava. Quase ninguém sabe, mas há pessoas cuja alma canta. Ou vibra ao som de cordas. Ou mancha nossa visão com cores, de vez em quando. A minha devia ser cantante, mas há tanto tempo jazia calada... Como se tivessem apertado sua garganta.
E por acaso a minha garganta também estava apertada agora. Na boca tinha aquele gosto de cabo de guarda chuva que a gente sente depois de acordar de ressaca e meus olhos estavam meio embaçados. Enquanto eu dobrava a esquina, começou a chover fininho. Pareciam lágrimas doces que acariciavam meu rosto, misturadas com as minhas, tão amargas.
Pois quando a pessoa se torna amarga, tudo dela também. As lágrimas, os olhos, os lábios e as palavras. Talvez meu amargo tivesse matado minha alma.

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