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Domingo de Manhã

Entro no chuveiro e sinto a água escorrer pelo meu corpo. De olhos fechados, passo os dedos pelo meu rosto. A barba crescida arranha e coça, já está pela hora de fazê-la. Abro os olhos e apanho meu pequeno espelho e o barbeador. Num dos cantos do espelho, uma mancha de batom vermelho. O seu batom.
Aquilo me tira do sério. Atiro o espelho pra fora do boxe com raiva. Não importa se estilhaçou e está no chão molhado. Era o que eu faria com qualquer outra lembrança sua, mas jamais seria capaz de fazer com você.
Olho para minhas mãos, bronzeadas e cheias de sabão. Jamais sonhei que mãos rudes segurariam algo tão frágil, frívolo e mágico como você. E que sua passagem seria tão rápida, como quando apanhamos o sabonete em plena queda e ele escapole pelos dedos, e por mais que tentemos segura-lo, ele continua a cair.
No outro quarto, escuto ela cantar. Mas ela não é você. Ela já conhece meu temperamento e não reclama, mas você... você conseguia arrancar o pior e o melhor de mim. As noites em que te perseguia alucinado, e você me mandava pra casa, só pra te encontrar sentada na escada, estão gravadas em mim a fogo.
Sei que vou sair do banho, me vestir e encontrar uma xícara de café à minha espera, talvez um beijo de despedida ou um bilhete carinhoso. Mas também encontrarei aquele vazio enorme que você deixou por debaixo da porta.

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