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Conto terceiro

Os pés mal tocavam a areia quente, lépidos. Os cachos insistiam em entrar na frente de seus olhos, que escorriam, escorriam em cascatas. Nas costas, sangue e vestígios de luta, arranhões e uma asa arrancada, penas presas no sangue seco. Sua pele parecia um raio de luar e só usava um grande pedaço de cetim para cobrir-se como em uma toga com as costas abertas. E os olhos, que escorriam em cascatas.
Sua asa restante movia-se trêmula, em pequenos espasmos, como que sentindo a falta da outra. Um filete rubro escorria diretamente de sua omoplata direita tal qual uma pequena mina d'água que brotara ali, manchando o tecido branco que envolvia seu corpo. Suas pernas estavam pesadas, cada vez mais pesadas, mas forçava-se à continuar, a correr naquela mesma direção. As pedras pontudas e a areia quente machucavam-lhe os pés, tão acostumados a voar, mas corria.
Nuvens gordinhas se aglomeravam no céu do amanhecer todo colorido de violeta, rosa e dourado, e o sol despontava como uma pequena brasa atrás das colinas. O vento soprava forte, tempestivo, úmido... um vento carregado de lágrimas do mar. Pequenas folhas voavam aos rodopios, e a pele de raio de luar ia perdendo seu brilho e se tornando apenas acinzentada, como se a mágica fosse morrendo.
Finalmente chegava ao seu destino, e a cada passo que se aproximava seu coração batia contra suas costelas. Sem parar de correr, alcançou a borda do penhasco e se projetou para o céu, a asa restante batendo desesperadamente, os braços abertos à espera de um milagre, os olhos e lábios estreitados.
E caiu. Em círculos, os olhos fechados, sua vestimenta de cetim se soltou e voou para longe.
Começou a chover. E os céus escorriam, escorriam em cascatas.

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