Delicado conto que levei um ano pra escrever, finalmente tive paciência para acabá-lo.
- Por onde exatamente devo começar?
- Comece por onde se sente mais confortável.
- Mas... Ele pode aparecer...
- É preciso confrontar todas as suas personalidades, para podermos tratá-las. Ou você não quer se tratar, Alexandra?
Os grandes olhos se arregalaram ainda mais e ela enroscou-se na poltrona. Os cabelos cor de palha, com textura de teia de aranha, eram longuíssimos; tão longos que ultrapassavam a poltrona e iam repousar no carpete cor de vinho. Veemente, ela balançou a cabeça e abraçou os magros joelhos.
- Ele... ele veio numa noite muito fria, a mais fria que me lembro. Da penteadeira, eu ouvia sussurros dizendo meu nome. Foi quando o vi encostado na cortina...
Alexandra tomou uma pose diferente. Tombou as pestanas, sentou-se ereta, coçou uma barba inexistente. Quando falou, sua voz saiu do fundo do peito, grave e lenta.
- Óbvio que era eu chamando, sua tonta - Ela olhou para mim com evidente asco. Eu, psiquiatra há vinte anos, nunca vira algo como aquilo.- Dê-me um cachimbo e uma taça de vinho que penso se continuarei a história. Aliás, só o cachimbo já é suficiente... - Boqueabri-me para a figura que obviamente não era mais Alexandra... Era Nino. Tateei a mesinha, achei um cachimbo, enchi-o de fumo, ofereci à delicada criança e Nino aspirou a fumaça com gosto, liberando em uma nuvem suave.
- Bom, muito bom. Meu nome é Martino... Nino. Nasci na França, em Toulouse; já nem me lembro mais há quanto tempo. Aos meus róseos quinze anos percebi que era diferente da maioria. Ao dormir, podia sair do meu corpo e tomar qualquer identidade que quisesse. E não me sentia cansado ao voltar pro meu corpo que me esperava... tempos áureos!
- E porque foi parar logo no corpo de Alexandra?
- Cale a boca, estou contando! - Ele jogou a cabeleira para longe, num gesto frenético. - Eis que fui envelhecendo e ficando tentado a fazer experiências. Parti numa longa viagem pelo mundo dos sonhos... E ao voltar, meu corpo tinha morrido. Não tive outra escolha, fiquei preso no mundo astral, e comecei a invadir o corpo de outras pessoas. Principalmente as infelizes, que sentiam um vazio natural na alma, como essa pequena tola.
A marionete Alexandra apertou uma de suas bochechas de pêssego, e alisou seus próprios lábios. Estupefato, assisti Nino levantar-se e ir para trás da poltrona, observar o pôr do sol na janela. Ele soltava pequenos círculos de fumaça, entretido.
- Sabe... - suspirou ele - Eu bem que gostaria de deixar de ser um fantasma.
Quando ela e ele se voltaram, ela não tinha mais olhos verdes. Eram de um vivo castanho, e a única coisa que eu enxergava em seu rosto, pois o sol batia em suas costas mostrando-lhe apenas a magra silhueta. Aqueles olhos castanhos se fixaram nos meus enquanto eu sentia um arrepio.
- E você, doutor?... Tem algum buraco na alma?
- Por onde exatamente devo começar?
- Comece por onde se sente mais confortável.
- Mas... Ele pode aparecer...
- É preciso confrontar todas as suas personalidades, para podermos tratá-las. Ou você não quer se tratar, Alexandra?
Os grandes olhos se arregalaram ainda mais e ela enroscou-se na poltrona. Os cabelos cor de palha, com textura de teia de aranha, eram longuíssimos; tão longos que ultrapassavam a poltrona e iam repousar no carpete cor de vinho. Veemente, ela balançou a cabeça e abraçou os magros joelhos.
- Ele... ele veio numa noite muito fria, a mais fria que me lembro. Da penteadeira, eu ouvia sussurros dizendo meu nome. Foi quando o vi encostado na cortina...
Alexandra tomou uma pose diferente. Tombou as pestanas, sentou-se ereta, coçou uma barba inexistente. Quando falou, sua voz saiu do fundo do peito, grave e lenta.
- Óbvio que era eu chamando, sua tonta - Ela olhou para mim com evidente asco. Eu, psiquiatra há vinte anos, nunca vira algo como aquilo.- Dê-me um cachimbo e uma taça de vinho que penso se continuarei a história. Aliás, só o cachimbo já é suficiente... - Boqueabri-me para a figura que obviamente não era mais Alexandra... Era Nino. Tateei a mesinha, achei um cachimbo, enchi-o de fumo, ofereci à delicada criança e Nino aspirou a fumaça com gosto, liberando em uma nuvem suave.
- Bom, muito bom. Meu nome é Martino... Nino. Nasci na França, em Toulouse; já nem me lembro mais há quanto tempo. Aos meus róseos quinze anos percebi que era diferente da maioria. Ao dormir, podia sair do meu corpo e tomar qualquer identidade que quisesse. E não me sentia cansado ao voltar pro meu corpo que me esperava... tempos áureos!
- E porque foi parar logo no corpo de Alexandra?
- Cale a boca, estou contando! - Ele jogou a cabeleira para longe, num gesto frenético. - Eis que fui envelhecendo e ficando tentado a fazer experiências. Parti numa longa viagem pelo mundo dos sonhos... E ao voltar, meu corpo tinha morrido. Não tive outra escolha, fiquei preso no mundo astral, e comecei a invadir o corpo de outras pessoas. Principalmente as infelizes, que sentiam um vazio natural na alma, como essa pequena tola.
A marionete Alexandra apertou uma de suas bochechas de pêssego, e alisou seus próprios lábios. Estupefato, assisti Nino levantar-se e ir para trás da poltrona, observar o pôr do sol na janela. Ele soltava pequenos círculos de fumaça, entretido.
- Sabe... - suspirou ele - Eu bem que gostaria de deixar de ser um fantasma.
Quando ela e ele se voltaram, ela não tinha mais olhos verdes. Eram de um vivo castanho, e a única coisa que eu enxergava em seu rosto, pois o sol batia em suas costas mostrando-lhe apenas a magra silhueta. Aqueles olhos castanhos se fixaram nos meus enquanto eu sentia um arrepio.
- E você, doutor?... Tem algum buraco na alma?
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