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Longo Setembro

Aos 13 anos entrei para o seminário, pois me tornar padre era meu sonho. O sacerdócio me inspirava as mais belas e fortes emoções, queria entregar meu coração, alma, mente e corpo para O Senhor. Estudava cuidadosamente os salmos todos os dias, e qualquer pecado que surgisse em minha mente era afastado e punido com orações.
Com o tempo devido, tornei-me padre e fui viver em uma pequena cidadezinha do meio rural, onde havia apenas um pequeno vilarejo e muita, muita poeira. Todos os domingos eu rezava a missa para todos os que moravam por ali, e entre eles destacava-se uma criança de rara beleza. Era uma menina de no máximo 10 anos, longos cachos de platina e ouro escorrendo-lhe pela cabecinha, os olhos do azul mais puro e pálido.
E era possuidora de tal pureza e tal aura de bondade, aquela criança, que não era difícil afeiçoar-se aos seus gestos graciosos. Vinha visitar-me com uma cestinha com flores todos os dias, e ria-se de meu encabulamento em ter seus bracinhos roliços envolvendo meu pescoço.
Como era de se esperar, os anos se passaram e Marie cresceu em beleza e bondade. Nada era difícil demais de se fazer, quando pudesse ajudar alguém. Éramos bons amigos, e quando me confidenciou que seus pais pretendiam obrigá-la a desposar um noivo, temi por sua integridade mesmo que nada pudesse fazer.
Naquele dia, estávamos sentados em meu casebre, e eu terminava de servir o chá. Ela, sentada à mesa, me sorria como um anjo. Tomou-me a mão entre as suas e com sua voz de rouxinol tristonho, sentenciou-me:
- Jamais me casarei com outro homem, que não você, Igor. E chamo-lo Igor ao invés de padre, por não ser um servo dEle que amo, e sim um homem.

Por que, oh meu Deus, me abandonou?

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