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Trinado

Só um tolo beberia sangue de fada, diz o ditado. Para humanos, ele pode fazer enlouquecer. Para outras fadas, pode ser um veneno. Mas para quem se alimenta de outros seres... ah... Ele se torna um vício. Quando a vi novamente, quase duzentos anos depois de nos conhecermos, estávamos ambas mudadas. Enquanto eu preferia me retirar às sombras do anonimato, ela decidira usar todo o poder de sua aparência para conquistar um lugar onde poderia facilmente manejar seres humanos.
Nos vimos do outro lado da rua, e ela logo veio até mim me cumprimentar.
- Não é hora de moças como nós estarmos na rua. - deu uma risada rouca.
- Essa é a hora exata para moças como eu. Felizmente sei me cuidar. - sorri para ela, perscrutando seus olhos escuros por alguma zombaria, mas não encontrei nenhuma.
Ela sorriu e tomou-me uma das mãos, levando-a aos lábios e beijando-a delicadamente. Aquele beijo fez todos os pelos do meu corpo se arrepiarem, como se tivesse me eletrizado. Ela não se deixou abater pelo meu espanto, e aproveitou a escuridão para roçar os lábios nos meus muito levemente.
- Adora...
Ela me envolveu num abraço, me pegando completamente desprevenida, e suspirou meu nome junto ao meu pescoço. As sensações humanas ainda estavam se desvanecendo em mim, por isso senti meu sangue correr mais rápido pelas minhas veias. Algo tomou conta de meus atos e agarrei seu rosto, choquei meus lábios contra os seus e a puxei para perto. Mais do que a excitação, tocá-la daquela maneira me deu fome. Minhas presas despontaram por entre meus lábios, perfurando os dela levemente. Provei um sabor forte e fiquei imediatamente embriagada, mesmo tendo sido só uma gota.
- Passe a noite comigo, Adora. Preciso de sua companhia, mais do que qualquer outra.
Ela percebeu que eu iria dar um passo para trás e agarrou meus ombros. Recuperei a pouca sanidade que ainda me restava e disse:
- Fayre, você tem pouco juízo até para uma fada. Sabe o que pode acontecer, se eu perder o controle. Seus olhos ganharam um brilho feroz, malicioso, quase cruel, e ela lambeu minha orelha como se a determinar que estava certa. Entrelaçou os dedos nos meus e foi me puxando docemente consigo, engoli o meu orgulho e a acompanhei a passos apressados.
Ela me levou para sua casa, um sorriso estampado no rosto durante o caminho. A tinta estava descascada e ramos de lavanda despontavam do jardim abandonado, onde as outras plantas jaziam secas. Entramos e ela trancou as portas e janelas, fechando as cortinas, e acendeu dezenas de velas que jogavam uma luz fantasmagórica em sua pele marrom.
Assim que terminou de acender as luzes, seu corpo colidiu com o meu com força enquanto ela se atirava em meus braços. Me beijou a boca com fome, segurando meu rosto com as mãos e um brilho estranho no olhar.
- Que saudade, Adora!
Arrancou as próprias roupas com as mãos trêmulas e me ofereceu o pescoço e o colo, como se não pudesse suportar mais um segundo sem meus lábios colados à sua clavícula. Cravei os dentes em seu seio esquerdo, vertendo o sangue esplêndido. Ela soltou um gemido abafado, enterrando os dedos nos meus cabelos e fincando as unhas em meus ombros. E ali permaneci, com ela, até a noite seguinte.

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