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Como um meteorito

Pedi companhia à noite para que minha solidão não fosse aparente, e logo ela me cobriu com um manto negro de estrelas. Quando saí de casa, a lua já estava no céu, como um rosto a me observar lá de cima. Aumentei o som nos meus fones de ouvido até que as batidas ficassem quase ensurdecedoras e obscurecessem os suspiros de outros como eu que estavam escondidos pelos cantos da cidade. Escondi uma adaga na bota e ajustei o vestido sob a manta da noite. Poucos passos e a situação que eu queria me foi oferecida. Uma porta de um bar bem iluminado que cheirava a carvalho abriu-se derramando luz dourada na calçada e um homem mal vestido foi jogado para fora.
- E não volte mais! Está me ouvindo?
O cabelo castanho do rapaz refletia de modo muito bonito a luz dourada, e seus olhos faiscaram na minha direção. Ele pareceu embaraçado por um segundo, antes de me oferecer o sorriso mais delicioso que eu já tinha visto e me estender a mão.
- A senhorita, ao contrário, está muito convidada a entrar.
Tatuagens de rosas vermelhas se escondiam por baixo de sua camisa branca, e ele tinha cheiro de vinho e alguma especiaria. Sorri e ofereci minha mão enluvada, e ele me levou até uma cabine reservada com assentos estofados de couro e uma mesa de madeira escura. Entre sorrisos e mesuras, logo me deixou uma garrafa de champagne e uma taça. "Com os cumprimentos da casa", dizia um cartão preso ao balde de gelo com letras floreadas "assinado, Arthur". Como um grande urso, não é mesmo? Tomei a taça comprida entre os dedos e beberiquei o champagne em goles pequenos. O gosto era tão fresco e agradável, que quando percebi já tinha consumido meia garrafa, mas não estava ali para isso.
Avistei Arthur, que era obviamente o maître, e nem precisei usar nenhum encanto pois ele veio em minha direção no mesmo momento. Joguei os braços ao redor do seu pescoço, sussurrando em seu ouvido e pressionando os lábios contra seu maxilar. Seus olhos reluziam como dois âmbares, comuns à todos aqueles que já tinham sido enfeitiçados. Sugeri algo em seu ouvido e ele me levou até uma escada que, ao ser escalada, acabava no sótão do hotel onde eram armazenadas provisões que não estivessem na adega. Foi quando, por um momento, minha visão se apagou e voltou rapidamente, e ao voltar estava escurecida nos cantos.
Foi quando observei bem seu rosto expressivo. Seu sorriso parecia... malévolo. Minhas pernas perderam as forças e antes que eu batesse no chão, fui amparada por mãos fortes que me levaram, meio desacordada, até alguns sacos de arroz. Ele me colocou ali cuidadosamente e deitou ao meu lado sorrindo, enquanto eu simplesmente aguardava seu próximo passo. Deixei que me expusesse o pescoço e que se aproximasse um pouco mais.
O cheiro de especiarias que vinha dele pareceu se intensificar antes que eu o identificasse de verdade, ele cheirava a enxofre. E seus olhos tinham perdido a cor e mais se assemelhavam ao carvão. Foi quando senti a sucção no meu pescoço que percebi que tinha caído em uma armadilha. Um dia da caça... Outro do caçador.

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