A noite tinha um aspecto achocolatado. Quente, seca, triste. De novo eu estava na janela, fumando meu cigarro pra ver se tirava os problemas do pensamento. Eram sempre os mesmos problemas... Por que eles vivem em círculos?
Meu problema é com teu sorriso. Dentes brancos que mastigam minh'alma. E também com seus olhos expressivos, que não se voltam para nada além do infinito sonho. Meu problema vem das tuas poucas carícias, da tua pouca opinião. Da tua pouca atenção. Do teu muito mistério.
Porque te fizeram assim, de massa mais pura e distinta da minha? Meus olhos são cascalho, os seus, ágatas marrons. Dos teus lábios em concha brotam pérolas, dos meus, palavras vazias. Minhas mãos rudes e desgraciosas tentam veementemente cobrir e acariciar as suas mãos de artista.
Bebo mais uma dose de uísque. Já deve ser o quarto ou quinto. Parei de contar as doses quando você parou de se preocupar. Mastigo uma ponta da gola do meu casaco, pois roer os dentes me dói. Uma lufada de ar quente entra pela janela, trazendo aquele seu perfume... Uma lágrima se dependura nos meus cílios, equilibrando-se antes de cair e manchar a carta escrita à minha frente.
Minha caligrafia sempre horrível me parece ainda mais grotesca agora, como se acompanhasse as ocilações do meu espírito. Se feliz, bela - se miserável, ininteligível. Não só é assim minha caligrafia, mas todos os aspectos do meu ser. São pequenas manivelas que formam meu modo de agir. E você veio e fez todas tremerem em hesitação.
Um conto de fadas, a alma medíocre que se apaixona pela mais bela. Os olhos vazios que veem dentro dos olhos cheios de segredo, aquilo que anseiam. A pele áspera que toca a pele suave. O fim.
Nada disso é novidade pra mim.
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