Pular para o conteúdo principal

Solitária I

Já era o quarto dia e já podia crer que meu juízo estava perdido. Mas deixe-me contar minha história, talvez isso me faça são.
Certo dia, abri meus olhos. Ao invés do teto iluminado em tons pastéis pelo sol, achei estar cego, tamanha a escuridão ao meu redor. Toquei meu rosto pra perceber que estavam abertos e logo em seguida entrei em pânico. Encontrava-me deitado num catre, preso à uma parede de pedra, por correntes.
Toquei meu próprio corpo em busca de cicatrizes, podiam ter roubado-me os órgãos enquanto dormia, um desses crimes terríveis dos dias de hoje. Mas nada estava fora do normal, e pelo que parecia, vestia o mesmo da noite anterior: meu suéter branco, minha camiseta, e minhas calças de pijama cor de creme.
Levantei-me. Com braços esticados, segui as paredes e constatei que me achava num quarto vazio com paredes de pedra, na completa escuridão e tudo além do catre, era uma pia com água gelada, um sanitário e uma porta. Estava só. Fazia frio, e a única coisa que possuía era um fino cobertor que cobria o catre onde eu estava e a roupa do corpo.
- Olá? Tem alguém aí?
Minha voz reboou de volta ao meu encontro, sem resposta. Quem teria me trazido ali? Quem teria me deixado no escuro? E por que? Sentei-me no meu catre, a cabeça girando e a garganta seca, a um passo de gritar aquelas perguntas. Mas não haveria resposta.
Sei que muitíssimo tempo se passou e adormeci, com frio e com fome. Envolvi-me com o cobertor, mas ele não me trazia nenhum alívio. Dormi um sono sem sonhos e sem perturbações. E acordei, novamente, na completa escuridão.
O que começava a me enlouquecer naquele quarto, era o estarrecedor silêncio. Parecia palpável, e até mesmo ao assobiar pra tentar quebrá-lo, emudeci tamanha pressão. Porém, quando um ruído se fez, foi como se um estrondo reboasse. Alguém movia a porta.
Como num sonho, uma minúscula portinha se abriu, uma tigela foi empurrada pra dentro, e uma nesga de sol entrou junto. No outro instante, o sol e a portinha sumiram. Aquela era minha única garantia de que não estava cego.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Encomenda

Metódico, cirurgicamente limpo, preciso. O sobretudo preto e a cartola de cetim da mesma cor; as delicadas luvas de pelica branca, tudo denotava sua classe. Era um assassino. E não era unicamente um assassino... era um gênio. O melhor e mais conhecido de todos os tempos, e além de tudo, o mais rico. Engraçado como essa noite não carregava sua maleta com seus preciosos instrumentos. Levava em uma das mãos sua bengala, engastada com pérolas negras; e na outra, um estranho embrulho branco. Era grande o suficiente para parecer um presente, mas a cobertura era uma tira de pano branco e simples. Não podia pertencer à nenhuma de suas amantes. Cuidadoso também nesse sentido, nunca deixara com que nenhuma delas sobrevivesse mais do que algumas noites de satisfação. Presenteava-as, claro, mas logo recuperava o lucro perdido. Até a noite em que a conhecera. Helena era uma figura mítica. Muito mais bela que Helena de Tróia, muito mais poderosa que qualquer rainha amazona. Seus cabelos de um ruivo ...

Terra Fértil

Assim vou correndo, pra longe daqui, sorrindo, sozinha, morrendo de rir; Já desperdicei meu veneno, quem merece, tanto faz ; não há mais alvo seguro pra se correr atrás. Talvez muito longe, talvez muito perto, o que procuro, não sei ao certo; já é tarde demais pra poder discutir, sorrindo, sozinha, morrendo de rir. Não mais lágrimas, nem mais esperança; vou rindo sozinha, como uma criança. Meus passos seguros, sozinhos, certeiros, perseguidos por sombras infinitas, não importa quantas vezes forem ditas, meus pés se movem lépidos, rasteiros. Assim vou correndo, pra longe daqui, sorrindo, sozinha, morrendo de rir. Meu sorriso conformado, em sua dor ele florece; minha lágrima fútil, em teu sangue se aquece. Acordei um tanto quanto sádica, imperativa em meu modo de amar; essas lacerações na tua carne, mais me fazem te admirar. Cortes profundos, sangrentos, tão belos quanto pinturas. Teus ossos e pele magra, as mais perfeitas molduras. Seu desespero estampado, doentio, em teus olhos sedento...

O Palhacinho

Volta e meia me pego olhando para aquela vitrine da antiga loja de brinquedos, que há muito foi fechada mas até hoje ninguém ousou arrombar e roubar. Os vidros já estão amarelados e tudo lá dentro está coberto de poeira, claro, mas os brinquedos parecem conter espíritos vivos dentro de si. De cada prateleira, seus olhos chamejam em nossa direção. De novo olhei para a estante de madeira escura e observei aqueles que sempre vinha ver, e podia jurar que mudavam de direção. Uma boneca, com ar sapeca e maravilhosos cabelos cor de rosa; um marionete de madeira, cujo títere sempre estava seguro em sua mão; e um palhacinho um tanto quanto macabro. Era um daqueles brinquedos educativos... Um poste coberto por aros coloridos de borracha, e na ponta, para segurar os aros, uma cabecinha sorridente de palhaço. Sempre me intrigava aquele brinquedo. Era o que mais parecia se mexer de propósito quando eu não estava olhando, e sorria de modo angelical lá da estante. Durante os últimos dias, tive até pe...