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Velha Alma Rabugenta

Num antigo calabouço de almas, ali estava ela. Já havia sido presa há tanto tempo que nem se lembrava mais de seus crimes e nem os guardas. Estava ali presa por convenção. No entanto, por mais que o tempo passasse, não deixava de reclamar. Passava o dia a resmungar e mastigar fumo, cuspindo-o numa jarra. Certo dia, alguém lhe deu um pedaço de giz.
No dia seguinte, a alma não mais estava ali. As paredes escuras do calabouço, todavia, brilhavam com palavras prateadas, harmonicamente espalhadas como pombas brancas na noite. E as palavras cuidadosamente escritas diziam:
"Eis que fujo desse calabouço para repousar eternamente em minhas palavras. Nada mais me segura nessas paredes. Minhas palavras hão de alcançar cada frestinha do mundo, e eu alcançarei os lugares mais belos junto delas. Fujo, sim, depois de tantos anos. Considerem uma aposentadoria de uma alma cansada e doente. Uma alma que nem corpo tinha para arrastar. No entanto, resmungar sempre me divertiu. Agradeço por ter tantos motivos pra reclamar!"

Comentários

Margos disse…
"Harmonicamente espalhadas como pombas brancas na noite". Considerando a possibilidade, achei uma delícia.

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