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Querido Steinway,

Ela acariciou as teclas que, há tantos anos, estavam cobertas delicadamente com veludo vermelho. Ah, seu querido piano! Ali ele estava, sem ser tocado por ninguém, apenas esperando que seus singelos dedinhos marmóreos voltassem. Com cuidado, ela jogou a capa das teclas para o lado e montinhos de poeira se levantaram quando bateu no tapete. Abriu as cortinas pesadas da pequena janela, e a luz caiu em cheio sobre aquela obra de arte. Seu lindo, maravilhoso piano de cauda, tão lustroso e carregado de memórias.
Ela sentou-se, vibrando de emoção, e pôs-se a discorrer uma melodia que aprendera nas aulas de música. Era tão simples e delicada quanto a jovem Marie, que com seus recém completados dezessete anos voltava àquela velha casa. Seus traços não haviam mudado em nada, as feições marcantes e tão perfeitas que pareciam intocáveis. Seu rosto tinha uma beleza tão pura, tão singela, tão delicada, que qualquer artista da época seria capaz de matar para retratá-la. Infelizmente, já era tarde demais. Em vida, ela jamais permitira tal coisa, pois repudiava sua própria aparência. A pequena só tinha noção de seu grande talento para música, e até hoje ele persistia em permanecer naquela casa...

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