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Branca de Neve

O barulho dos sapatos de dança contra o assoalho ditavam o ritmo. Tá-tá- tá-tá-tá. Mexi na gola do meu paletó, desconfortável, e empurrei meus óculos que teimavam em escorregar. As roupas emprestadas do meu irmão mais velho não causavam grande impressão, mas ao menos eu não parecia muito diferente dos outros rapazes. Aquelas eram as aulas de dança para o baile de inverno, dali a duas semanas, e eu nem ao menos tinha ideia de quem seria meu par. Para treinar, a professora me fazia colocar uma das mãos em sua cintura e com a outra, entrelaçava seus dedos roliços como salsichas nos meus.
Nenhuma das outras garotas parecia remotamente comigo - enquanto todas eram altas, magras e pareciam rosadas como pêssegos, eu era como um reflexo pálido na madeira escura. Não formaria um bom par com nenhuma delas e nenhuma aceitaria, se eu convidasse. Já era a décima vez que fazia a professora girar e dessa vez tinha que trocar de par e girar outra garota, mas no meio do caminho um dos meus sapatos desamarrou e eu vi o chão de madeira se aproximar rapidamente.
Já apertei as pálpabras na espera da dor e humilhação, mas percebi que alguém me segurava pelos ombros. Abri os olhos e levantei a cabeça para encarar um lindo par de olhos castanhos, engastados em uma pele de marfim com minúsculas sardas.
Oh.
- Você está bem?
As pontas de seus dedos eram amareladas, denunciando um vício em nicotina. Seus braços esguios saíam de mangas azuis de tecido diáfano e ela parecia ter uma aura de ser mistico. Minha única resposta foi um olhar tão minucioso para seu rosto que não pude evitar corar e desviar os olhos logo em seguida.
Ela parecia uma fada. Me ofereceu suas mãos e colocou nas minhas sua pequena cintura enquanto sorria. Em uma orelha ela tinha um brinco de pérola cuja haste era feita de latão, o que fazia um contraste bonito com sua pele clara. Seu cabelo escuro tinha a textura de uma teia de aranha e se movia ao menor sopro, refletindo as luzes e deslizando sobre seus ombros.
- Eu... eu estou ótimo. Você gostaria de ser meu par? - meu lapso de coragem me aqueceu por dentro e me pegou de surpresa, me fazendo corar de novo e virar os olhos.
- Mas é claro. - Ela parecia encantada com a proposta.
Ela girava sem nenhum esforço da minha parte e guiá-la era muito fácil. Sorrimos um para o outro como se guardássemos um segredo. Ela desamarrou o laço de cetim que marcava sua cintura e o enrolou algumas vezes no meu pulso, antes de rir como sinos de ouro e correr para fora. Ela desaparaceu entre as outras pessoas.
Nunca mais a vi.


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